quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A Galopeira e o berrante

Quando pequeno eu fazia, todo ano, duas viagens. Em julho eu ia pro Rio de Janeiro passar um tempo com minha mãe biológica e em outubro eu ia com minha madrinha e minha mãe, que eu chamava de mãe mesmo, mas era avó, pra Aparecida do Norte. Ir pro Rio era legal, conhecia muita gente, ia à praia, nos parquinhos... Mas Aparecida era muito bom, porque ia com minha mãe-avó. E se tem uma coisa que eu sempre gostei foi de exibir minha avó quando saía com ela. Mulher forte, de opinião, respeitada e querida por todos. Era brava, ai de quem aprontasse perto dela, fosse filho de qualquer um ela sempre passava uma boa carraspana.
Pois bem, eu devia ter uns 4 anos ou 5, não me lembro bem e estávamos nos preparando pra ir a Aparecida. Dois dias antes a mãe (vó) já começava, junto com minha madrinha, a fazer os quitutes. Broa de milho, biscoito de trança, rosca de araruta (que nunca soube o que é) e frango frito pra comer na hora do almoço. A mãe não deixava a gente comer as porcarias de beira de estrada e tinha horror de quem comia biscoito de polvilho em ônibus, além de fazer barulho, sujava toda a roupa. Na hora da parada, enquanto o povo descia pra almoçar, a gente ia abrindo os tupperwares e o cheiro dos quitutes sempre atraía uns 4 ou 5, coisa que eu odiava, porque sempre os adultos tinham que comer antes dos pequenos e sobrava pouco pra gente. Porém, qualquer protesto poderia render uma coça bem dada na frente dos outros, e eu não estava disposto a correr esse risco pelos biscoitos que sempre comia em casa.
Nessa ocaisão, o menino Donizetti dominava as paradas de sucesso com seu superfôlego cantando Galopeira. Como gritar sempre foi uma das minhas coisas preferidas, eu saía pra tudo que é lado cantando Galopeira, como se não houvesse amanhã. Pois bem, cismei que queria ser o Donizetti. Andava pra todo lado de calça "UStop", camisa xadrez de flanela que a mãe mandava a costureira fazer e uma botinha zebu pra completar o look.
Já na cidade, estava assim caminhando, depois de assitir a missa da Basílica, quando vi um compacto do Donizetti em que ela aprecia com um berrante. Pronto, deu-se a desgraça! Cismei que queria um berrante. Primeiro cochichei no ouvido da madrinha, que mandou pedir pra mãe. Fui pedir.
_Mãe, me dá um berrante?
_Pra quê, menino?
_Quero ficar igual o Donizetti!
_Mas você já tem a roupa, a bota...
_Mas eu quero o berrante também!
_Mas é caro! Vamos embora, quando a mãe tiver dinheiro a mãe compra!
_Mas eu quero agora!
_Vamos embora, que hoje não dá!
_Mas eu quero, e quero e pronto!
Nesse momento eu emburrei, cruzei os braços e fiquei rígido, e o povo ao redor já parando pra ver o espetáculo!
_Vamos embora! Senão a gente vai perder o ônibus e você vai ter que morar aqui com os mendigos (coisa que eu tinha pavor).
_Não saio daqui sem o meu berrante! Gritei, cheio de opinião.
_Ah não? Então vamos ver!
Senti as palmadas no traseiro fortes e ardidas. E comecei a chorar, na frente de todo mundo, que parou pra ver. No que minha avó, envergonhada por ter me batido na frente dos outros, solta a pérola:
_Com esse berro que você tem, não precisa de berrante coisa nenhuma, vamos embora.
E eu fui, com o "rabo quente", aos berros, sem o meu berrante!

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sobre o amor

Kátia era vizinha... Meininha de bochechas rosadas e cabelinho liso, com franjinha. Eu a via e as minhas bochechas se incendiavam. Sorria, com os dentes da frente faltando. Era minha namoradinha, embora ela não soubesse. Vê-la passar pra ir pra escola era a minha felicidade. Comprava bombons que mandava minha prima entregar a ela, com cartinhas. Mais tarde vim a saber que minha prima os comia, e rasgava as cartas. Essa história durou anos e anos.
Lembro-me uma vez que, em uma festinha de aniversário de um amigo ela sentou perto de mim na mesa. Eu criei coragem e pegeuei em sua mão por baixo da mesa, suas bochechas instantaneamente ficaram ainda mais coradas. Apertei um pouquinho a mão, já sentia o sangue faltar no meu corpo, estava todo em minhas bochechas. Esse foi nosso contato mais íntimo, em anos de convivência. Logo ela entrou no ginásio, conheceu o namorado, hoje seu atual marido.
Kátia sintetiza minha relação com o amor, que sempre fica comigo. Acho que por ser carente, desde pequeno, meu amor assusta as pessoas, e tenho que guardá-lo comigo. Muitas Kátias vieram, em diferentes épocas, com alguns beijos em vez de apertos de mão, mas o final sempre o mesmo... O menino tímido acaba sozinho, em um canto, no fim da festa.

domingo, 16 de novembro de 2008

Tempo bom que não volta nunca mais.

Depois de mais de uma semana, acho eu, sem computador, estou de volta ao mundo virtual nesse dia modorrento de domingo, quando olho pra janela e vejo as pessoas andando no Minhocão e lembro dos domingos da época que eu morava na roça.
Domingo costumava ser meu dia predileto. Acordava mais tarde e depois de dar comida pras galinhas, porcos e demais bichos do sítio era a hora de tomar banho e pôr uma roupa nova. Adorava vestir a roupa nova, embora ela não fosse pra sair no terreiro, ou era surra na certa. Mas aí, podíamos brincar dentro de casa, eu e meu primo mais velho, que sempre escolhia os brinquedos mais novos. Quando minha avó estava de bom humor, podíamos ir brincar com o Cafi, que era meu melhor amigo na época. Cafi era filho da hippie que morava no sítio da frente, e tanto ele como sua família foram responsáveis por muitos momentos de felicidade na minha infância. Eu e Cafi e o Nêgo, meu primo, brincávamos de playmobil, às vezes com nossos carrinhos a pilha, tudo com muito cuidado, pra não sujar a roupa e ganhar a surra prometida.
Depois disso, éramos chamados aos gritos pra almoçar. Ah! O almoço! Macarronada com bastante queijo ralado, galinha e tutu de feijão! Era o único dia da semana que podíamos comer carne em casa. Não que faltasse, mas durante a semana tinha que comer verdura. Depois do almoço, minha tia arrumava a gente e levava pra passear na Rua, como chamávamos o lugarejo mais próximo do sítio, Correia de Almeida.
Correia de Almeida, a Rua, parece uma cidadezinha cenográfia, com pracinha no meio e o resto tudo em volta. As crianças ficam brincando pela praça e de vez em quando são chamadas por um ou outro adulto pra fazer um mandado, tipo comprar cigarro, essas coisas que eles têm preguiça de fazer. Eu adorava fazer mandado pros outros, sempre rolava umas moedinhas. Depois de andar um pouco na praça íamos na casa das tias, onde sempre tinha café e broa de milho esperando por uma visitinha. Antes de escurecer tínhamos que voltar pra casa. Chegávamos, tirávamos a roupa nova, tomávamos banho e colocávamos o pijama. Me lembro q eu tinha um de flanela, com florzinhas azuis miudinhas, azuis, que eu adorava.
Hora da janta, de correr pra não ter que comer as costelas ou o pé da galinha, que provavelmente seria o que ia sobrar pra os retardatários. Víamos os Trapalhões, todos juntos e íamos dormir. A segunda-feira nos aguardava, junto com a contagem regressiva para um próximo domingo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Da dificuldade de encontrar o meu lugar

Minhas origens sempre foram um mistério. Uns dizem que tenho cara de boliviano, un dizem mexicano, outros acham que sou japonês. A verdade é que eu também não sei. Desconfio que meus olhos puxados venham de herança indígena, porque se vocês virem a minha avó dirão que é uma índia velha de cabelos encaracolados. Também nada posso afirmar com certeza sobre minhas raízes, pois a única coisa que sei de meu pai é o primeiro nome, que me disseram ser Carlos.
A família de minha mãe é composta, 90% de negros. Meu falecido avô era tão negro que brilhava à luz do sol, minha mãe é um pouco mais morena que eu, o que se deve ao sol que toma todas as manhãs, mas por incrível que pareça, entre meus primos eu era considerado branco. Era considerado por eles como sendo mais fraco, ninguém me chamava pra brincar de muita coisa, porque segundo eles o "branquelo" ia se machucar e chorar, e chorar era comigo mesmo. Não podia cair e me ver machucado que chorava como se não houvesse amanhã. Então aprendi a brincar sozinho, o que foi bom de uma certa forma, porque aprendi a ler e desenhar.
Já na escola, eu conseguia me misturar mais, por haver crianças de todas as raças. Até que minha mãe resolve entrar na minha história.
Minha mãe trabalhava e morava no Rio de Janeiro. Ia em Minas me ver de dois em 2 meses, às vezes de 3 em 3, e assim eu seguia crescendo e tendo ela como uma visita, e minha avó como mãe. Eu estudava em um dos melhores colégios da cidade, pois minha mãe achava que o melhor que ela podia me dar era pagar colégios caros, e economizava pra isso. Economizava também no carinho, nos abraços. Tanto que eu fiquei chocado no dia que vi um coleguinha meu de escola ganhando um beijo no rosto quando fora deixado no portão. Perguntei escandalizado:
_Sua mãe te beija?
_Minha mãe e meu pai, ué.
Não consegui pensar em nada. Minha mãe nunca me beijava e pai eu nem nunca soube o que era.
Um dia, em uma dessa de suas idas a Minas, minha mãe disse que precisava resolver uns probemase pediu que eu esperasse ela na porta do colégio. Estudava no Colégio Imaculada Conceição, regido por freiras que devem estar ardendo no inferno a uma hora dessas (outro dia explico o porquê).
Espalhei pra todos os meus amigos, que eram pouquíssimos por sinal e na verdade eram só meninas, que minha mãe iria ao colégio e eu ia me encontrar com ela no portão. Na hora da saída enchi o meu peito e fui, com umas 3 meninas em direção ao portão. Lá estava ela.
_Alá, minha mãe tá lá!
_Cadê, Charles?
_Ali ó, no canto do portão, me esperando.
_Onde? Atrás daquela preta?
Adivinhem quem era a preta que apontaram.
Fiquei mudo, andei mais rápido, peguei minha mãe pela mão, olhei com um misto de tristeza e decepção para as três, que não sabiam onde enfiar a cara, desde então eu percebi que meu lugar não era ali.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Experimentações, talvez tudo tenha começado aqui.

Cresci numa casa com muitas mulheres. Se fossem sete, eu teria escrito um livro e tinha virado minissérie na Globo. Mas ao menos 3 ou 4 sempre estavam por perto. E mulher é tudo vaidosa, principalmente as de minha família, que não são lá bem dotadas de beleza natural e apelam pra todos os truques possíveis da química e da tecnologia moderna. Sendo assim, sempre fui muito vaidoso, a ponto de me besuntar de pomada minâncora dos pés à cabeça quando tinha 3 anos de idade (história contada pela minnha avó) e aparecer pelado, na cozinha parecendo um fantasma e dizer todo orgulhoso: " Olha mãe, passei todo o seu creme!". Fato que me rendeu umas palmadas e um banho com água quente, poderia ter sido aguarrás, pra remover o troço.
Pois bem, já com 6 anos e na primeira série, porque eu era adiantado e aprendi a ler sozinho, entro no banheiro depois de minha tia tomar banho e vejo um objeto azul... Um barbeador! Peguei e tranquei a porta. Por uma razão que eu nunca entendi, o armarinho com o espelho do banheiro lá de minha casa em Minas, em vez de ficar em cima da pia, fica bem alto oposto ao vaso sanitário. Subi no vaso e deu pra ver minha cara toda no espelho. Pegeuei o barbeador e já na primeira, que fazia tchan, foi-se minha sobrancelha esquerda. Batidas na porta.
_ Charles! Abre que eu esqueci meu prestobarba!
Suei frio, sabia que eu tinha feito merda. Abri a porta, já monocelha!
_ Mãaaaaaaae, vem ver o que o Charles fez!
Comecei a chorar, já imaginando a surra por ter mexido onde não devia. Em vez de palmadas, uma explosão de risos. Todo mundo da família chegando, apontando pra minha cara e rindo.
Jurei que não sairia mais de casa, nunca mais. Fui forçado a ir pra escola, e implorar pra ir de boné não surtiu efeito algum.
_Não queria ficar bonito? Agora vai assim, bonito!
Até crescer de novo, fui chamado de Carequinha... Meu palhaço favorito se tornou o pior apelido da minha infância.