Ela tinha seu
lugar de destaque no quarto do vô. A harmônica era a única coisa que amolecia o
coração do velho. Ali, em cima do
cabideiro, em uma maleta grande e preta, sua Todeschinni de 80 baixos era
guardada como uma joia. Ninguém tinha permissão para triscar a mão nela, reinava
soberana entra as outras quinquilharias acumuladas nos seus muitos anos de
vida.
Seu Sebastião
Camilo era um homem negro e rígido como a maleta de sua sanfona. Neto de
escravos, sempre trabalhou muito duro pra conquistar tudo o que tinha e dar uma
vida melhor para seus filhos, mesmo que o melhor que pudesse fazer estivesse
muito aquém do ideal. Trabalhava de sola a sol, de domingo a domingo e só se
permitia descansar quando, no domingo à tarde sentava-se no alpendre com a companheira
e o Velho Barreiro aos pés do banco. A cada trago, solfejava uma canção. Vida
Amargurada de Tião Carreiro e Pardinho era sua favorita. A mãe não gostava
muito porque achava que ele cantava pra outra mulher.
Embora ele não
falasse muito comigo, eu o admirava. Queria ser forte e conhecido como ele era,
queria ser tão sabido e tão esperto quanto ele. Mas o gosto pela música era a
única coisa que tínhamos em comum. Eu e o Nêgo sentávamos perto e ficávamos
ouvindo aquele cantarolar tímido, quase inaudível enquanto a acordeom o envolvia
e tomava conta do terreiro, alcançando a vizinhança com seu maravilhoso
firinfonfon. Era um dos únicos momentos em que aquele homem sisudo e de poucas
palavras se aproximava da gente. Fazia a gente rir quando já estava bêbado e
errava a letra das músicas. Não gostava muito quando a gente ria e dava bronca,
mas não parava.
O vô se foi, mas
a harmônica está lá. Ninguém nunca aprendeu a tocá-la, então ela fica lá muda. Já
não reina mais, porém tem seu prestígio. Espero que a essa altura não tenha esquecido
como cantar. Acho que ela ainda espera que ele volte e a leve na vendinha pra
tomar um pingão.